Que engenhoso artifício literário é o antigo estratagema do gato e do rato, através do qual o protagonista implacavelmente e mais habilmente provoca o antagonista ao ponto do desespero absoluto e eventual resolução do enredo. Mas o que acontece quando um filme cria engenhosamente adversários que aparentemente são protagonistas, quando não está totalmente claro quem está perseguindo quem?
Esse é o caso da provocativa Neruda de Guillermo Calderon, uma pseudo-biografia do famoso poeta chileno e ganhador do Prêmio Pulitzer Pablo Neruda, dirigido por Pablo Larrain. O mais famoso comunista e senador por seu partido no Chile pós-Segunda Guerra Mundial, Neruda (nome verdadeiro Ricardo Reyes e inteligentemente retratado aqui por Luis Gnecco, que tem uma semelhança impressionante com Neruda da vida real) é um intelectual extraordinário em muitos níveis, e em mais alguns um caipira quase maniacamente egoísta. Suas crenças políticas e socioeconômicas sinceras fizeram dele a voz dos trabalhadores e oprimidos, e o maior espinho no lado do governo fascista do presidente chileno Gonzalez Videla (Alfredo Castro), que baniu o comunismo e quer Neruda capturado e humilhado.
Os poemas de Neruda falam de igualdade para as massas, mas a que custo? Uma cena potente a cerca de dois terços do filme questiona os motivos de Neruda. Uma mulher comunista obstinada, a quem aprendemos que limpa casas (e pior) para os cidadãos da classe alta, se aproxima do quase divino Neruda para pedir seu autógrafo, perguntando: Quando vier a revolução, os trabalhadores serão iguais ao seu status social ou ao dele? O poeta está sem palavras; sua resposta final menos do que verdadeira.
O inimigo de Neruda neste conto é o inspetor de polícia Oscar Peluchonneau (Gael Garcia Bernal em uma performance ricamente inspirada). Parte desajeitado, parte Sam Spade, parte Inspetor Javert, Peluchonneau é insultado por Neruda, que fugiu para a clandestinidade para evitar o mandado de prisão sob a acusação de traição. O poeta respeita e odeia Peluchonneau e deixa pistas na forma de romances policiais noir, que Peluchonneau lê com grande interesse. Além disso, Neruda caminha pelas ruas de várias cidades chilenas, escondendo-se à vista de todos, por assim dizer, evocando o próximo movimento de seu perseguidor.
Adicionada à mistura está a adorável esposa argentina de Neruda, Delia (a silenciosamente poderosa Mercedes Moran). Uma artista talentosa por si mesma, ela é dedicada ao marido, embora o amor deles não seja movido por paixão física. Sim, suas palavras despertam grande paixão em todos que as ouvem, seja sua esposa ou as massas que bajulam as frases românticas de Neruda, ou uma drag queen em um bordel. Mas, para Neruda, a paixão é a força pela qual ele calcula cada movimento, cada palavra, para garantir sua imortalidade literária.
A realidade entra e sai do roteiro de Calderon. O inspetor de Garcia Bernal é incrivelmente interessante; ele é filho de uma prostituta e talvez um lendário chefe de polícia. Ou é ele? Neruda de Gnecco é calculista e intrigante; ele é um bon vivant de bon vivant. Deles é uma dança lindamente coreografada, pontuada pela cinematografia suntuosa e quase sempre mal iluminada de Sergio Armstrong. Seu uso de luz e sombra e cores desbotadas cria uma atmosfera noir exuberante que simplesmente envolve o diálogo.
Calderon e Larrain (também diretor de Jackie, indicado ao Globo de Ouro) tiraram grande licença dramática com a história de Neruda, e a recompensa vale o risco. As emoções são totalmente fabricadas e todos estão envolvidos, incluindo os personagens na tela. Às vezes as regras devem ser quebradas, e em um cinema como este, isso é uma coisa muito boa.
The Orchard apresenta um filme dirigido por Pablo Larrain e escrito por Guillermo Calderon. Classificação R (para sexualidade, nudez e alguma linguagem). Tempo de execução: 108 minutos. Em espanhol e francês, com legendas em inglês. Estreia sexta-feira no Music Box Theatre.
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